Gestação de uma mulher Autista
- Gabriela Carletto
- 19 de mar. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 26 de ago.
O que para muitas mulheres pode ser algo maravilhoso, para uma mulher Autista, a gestação pode ser vivenciada com muitos desafios.

Hoje gostaria de falar um pouco sobre Gestação e Autismo. É estranho pensar que muito pouco se fala sobre a mulher Autista. Sim, ela foi uma criança Autista, que cresceu!
“Eu sentia o meu sangue fluindo por todas as minhas veias, em um fluxo contínuo, que me trazia uma sensação de profundo desconforto"
Ao voltarmos o olhar para a experiência do feminino, nos deparamos com uma dimensão profunda, muitas vezes inominável, que se expressa não apenas na linguagem, mas na carne. Gestar uma vida é, para muitas mulheres, um processo de transformação visceral, hormonal, emocional, subjetiva, simbólica. Mas e quando essa mulher é autista? Como se dão as sensações, os afetos, os desconfortos, as necessidades? Quantos desses gestos e silêncios foram ignorados pela ciência, pela clínica e até pelas redes de apoio?
Tenho acompanhado, na clínica e na pesquisa, algumas mulheres autistas durante a gestação, o parto e o puerpério. E, mais do que isso, sou uma mulher autista. Vivenciei duas gestações, ambas antes de saber que era autista. O diagnóstico só viria mais tarde, quando já havia parido, cuidado, amado e sofrido em silêncio as violências cotidianas de uma maternidade que não se encaixava no ideal.
Por isso, hoje, desejo abrir esse espaço para nomear aquilo que tantas vezes foi vivido em silêncio: a gestação na pele de uma mulher autista.
🧠 O sistema sensorial e o corpo que não silencia
Um dos aspectos mais sensíveis do autismo é a questão sensorial. A hipersensibilidade (ou hipossensibilidade), somada ao que alguns chamam de "ruído branco", ou seja, a percepção ampliada dos estímulos internos do corpo, pode tornar a gestação uma experiência caótica. Um corpo que já sente demais, ao ser atravessado por um outro corpo em formação, pode entrar em estados de desorganização profunda.
Vejamos alguns desses sentidos em detalhe:
👋 Tato – a pele que estica e não tolera o toque
Durante a gestação, o corpo se transforma: a pele se estica, a barriga cresce, os seios aumentam, as roupas deixam de servir. Para mulheres autistas com hipersensibilidade tátil, essa transformação pode ser extremamente incômoda. O simples ato de passar um creme hidratante pode gerar aversão. O toque do outro, mesmo carinhoso, pode ser insuportável. O corpo passa a não pertencer mais à própria mulher, e essa sensação de “invasão constante” é difícil de ser verbalizada. Mas é real. E precisa ser escutada.
👃 Olfato – o cheiro que enjoa o mundo
A gravidez já potencializa o olfato em qualquer mulher. Agora imagine esse sentido amplificado em alguém que já convive com hipersensibilidade olfativa. Perfumes, alimentos, o cheiro do ambiente, do parceiro, até mesmo o cheiro da própria pele tornam-se gatilhos para náuseas intensas, vômitos recorrentes e até sensação de colapso.
Muitas mulheres autistas relatam, durante a gestação, o afastamento social e conjugal por não suportarem determinados odores, algo que é mal interpretado como frieza, quando na verdade é apenas uma tentativa de proteção.
👅 Paladar – a fome seletiva que ninguém entende
O paladar, estreitamente ligado ao olfato, também sofre mudanças. Desejos e repulsas surgem, sabores se tornam insuportáveis, texturas passam a gerar aversão. Quando a mulher autista já tem histórico de seletividade alimentar — algo muito comum no espectro — o desafio é ainda maior. A exigência nutricional da gestação entra em conflito com os limites sensoriais, criando um ciclo de culpa, insegurança e, muitas vezes, desnutrição emocional.
👂 Audição – quando o som de dentro é insuportável
Para algumas pessoas autistas, a hipersensibilidade auditiva é voltada para os sons do ambiente externo. Mas há também quem escute os ruídos internos do corpo: a pulsação, a digestão, a movimentação do bebê, o sangue que circula. É o chamado “ruído branco interno”. Durante a gestação, essa escuta é intensificada, e a mulher sente tudo, o tempo todo. Essa hiperconsciência corporal pode ser profundamente desorganizadora. E ninguém vê.
👁️ Visão – o espelho que já não reflete
Por fim, a visão também se altera. Há mulheres que relatam visão turva, fotofobia, dificuldade de focar. Mas o mais intenso, muitas vezes, não está nos olhos, está no que se vê no espelho. O corpo muda. A imagem corporal se distorce. A mulher não se reconhece.
E, para quem já vive com dificuldades de integração sensório-perceptiva, isso pode significar uma crise de identidade.
🌺 Cada corpo é único — mas todos merecem escuta
Não há regra para gestar. Nem entre neurotípicas, nem entre neurodivergentes. Mas há uma urgência: precisamos falar sobre o corpo da mulher autista grávida. Precisamos escutá-la, não apenas no consultório, mas nos serviços de saúde, nas redes de apoio, nas famílias, nas políticas públicas.
Eu escolhi falar. Depois de mais de 17 anos em clínica, depois de ser mãe duas vezes, depois de receber o diagnóstico de autismo na vida adulta, eu escolhi transformar a experiência em pesquisa, a dor em palavra, a solidão em caminho compartilhado. E, a partir disso, outras mulheres também começaram a falar. A contar o que ninguém perguntou. A existir como mães, como mulheres, como autistas, e como tudo isso junto
.
Para encerrar: escute, acolha, proteja
Se você conhece ou acompanha uma mulher autista que está gestando, observe com cuidado. Talvez ela não consiga pedir ajuda. Talvez ela esteja lutando contra os próprios limites sensoriais, emocionais e sociais. Talvez o silêncio dela esconda um pedido de acolhimento.
E se você for essa mulher: Saiba que você não está sozinha. Seu corpo é legítimo. Sua forma de gestar é digna. Sua experiência importa. O mundo ainda está aprendendo a te escutar, mas aqui, neste espaço, sua história será sempre escutada com amor, ciência e verdade.
🔎 Gabriela Carletto – A experiência perceptiva do corpo próprio em mulheres adultas diagnosticadas autistas (2025) Instituto Eu no Mundo – Pesquisa, Clínica e Educação em Neurodiversidade




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